sexta-feira, 27 de junho de 2025

O que ninguém pode ser


O que ninguém pode ser

É a forma como você sorri pra vida, como seus olhos brilham, como você celebra a noite, como sente a batida da música, se perde na aletoriedade dos pensamentos, como a vida vira palco e você consegue continuar existindo sem desespero, como não precisa de aprovação, como tem afeto, se transforma e vira poema. Poema que quase ninguém escreve. É como não consegue terminar um livro e nem escrever uma dedicatória.

É seu jeito de andar, os trejeitos da alma ao atravessar a rua te carregando no colo, como você bebe vinho e esquece tudo no outro dia, como não fica de porre, mas segunda-feira tem ressaca e uma mente devagar quase parando no fim do dia. O modo como veste as calças rápido e vai embora depois do gozo, alegando compromissos quase onze e meia da noite, para o dia seguinte.

É como não gosta de tomar café (e nisso concordamos), como sente tudo à flor da pele, uma paisagem de um poema, como fala em latim, como se repete e não cansa de contar as mesmas histórias e no final ainda achar graça, poucos entendem o seu falso ineditismo. O modo como você observa alguém assoprando café e faz caras e bocas, como abraça quente e ferve dentro das calças. A maneira como sabe usar bem sua boca e oferece silêncio quando poderíamos estar gemendo bem alto que seria um escândalo para todo o condomínio. É sim, a forma que você faz os outros se sentirem humanos.

É o seu perfume que exala um quarteirão e todo mundo sente, é a doçura em falar de nossas avós com raro brilho eterno nos olhos, é quando pede pra eu ficar quando o meu mundo está desabando, quando me pede pra escrever enquanto o que mais quero é esquecer, então escrevo. Não para mim, mas por uma graça, para sentir paz (e eu precisava disso), me pede para não guardar palavras, sussurro nos seus ouvidos umas bobagens, de repente ficamos em silêncio. Não porque algo nos incomoda, mas porque nos respeitamos. Acima de tudo, entendemos o espaço e a dor do outro.

Quando vai no mercado e diz que comprou morango para colocar na salada de frutas e reclama que não vai fazer vinagrete, pois desperdiçar tomate assim não vale a pena, está muito caro. Ou quando reclama na fila do hospital dos pacientes que estão de fone de ouvido e não estão ouvindo chamarem seus nomes e depois reclamam que ainda não foram atendidos.

Entende? É sobre isso.

É quem lembrou de você, em um dia difícil e tirou cinco minutos para saber como estava. Antes de entrar para assistir mais uma aula que você acha entediante e desnecessária para o seu curso, mas precisa da aprovação. É como falou mal dos testes vocacionais. E nunca se identificou com nada. É quem me olhou nos olhos e enxergou melhor do que eu mesmo, quem me puxou e não deixou desistir, enquanto estava tendo quase um treco, no início de um bournout que só você identificou. Foi quando fez bolo de cenoura com cobertura de chocolate e sem querer acertou que era o meu favorito da vida.

Foi com toda minha alma, corrigiu algumas falhas, me pendurou no colo e girou comigo de olhos fechados, segurou forte minhas mãos e não soltou até a crise de ansiedade passar, "inspirou e assoprou a vela comigo umas quinze vezes".

Em suma, é você, aquilo que ninguém pode ser. Podem colocar outras pessoas no seu lugar, te dizerem que você é substituível, depois de você, pelo menos umas trinta pessoas passarão pelo seu cargo, sentarão no seu assento, sentirão aquilo que você aguentou tantas vezes quando quis desabar, e resistiu. Só desabafou comigo. Fez morada em mim. Você que foi alma. Presença e espírito. Você que só tocou com o coração, que deixou o melhor nos outros, nos fez enxergar o mundo com coragem de novo, isso, ninguém tira de você.

É você. O seu jeito. É a sua asa. A sua proteção. Aquilo que ninguém carrega além de você. 

Hudson Vicente.