domingo, 13 de dezembro de 2020

Dê lírios para sua mente

 

O céu abriu
Daqui não deu pra te ver
Outra vez mudou de cor
Aquarela de Debret

Riscou um ponto no horizonte
Infinito, inconstante
Sutil anil sumiu
Que azul é esse?

Na pressa, não te moldurei
Um quadro só
No fundo do armário
Até esqueci de assinar

Se te acharem por lá
Quando eu me for
Qualquer um pode pintar

Não tem graça, a tinta desmancha
Não tem cor, nem brilho ou humor
Testo teu texto em formas de dor
A luz de dentro já se apagou

Em casa ninguém me nota
Canto mais desafinado que vitrola
Não tenho cara certa
Me falta um pouco de cachola

Se alguém quiser, me enrola
Apago a luz
Olha o céu,
A lua
Não brilha
Acende e apaga as estrelas

Quando vi era dia
Amanheci sem me reconhecer
Te conheci, quis morrer
Agora rasguei o esboço
Pintei onde faltava dor
Acrescentei sentimento
E destruí
Alguém tinha que morrer
Eu não podia ser

Nem segui o roteiro
Meu analista me encaminhou pro psiquiatra
Tomo remédios, esqueço as datas, meu nome, o sabor

Só quando abro a janela e olho lá pra cima, é que me faz sentir amor
Mas nem assim para descobrir quem eu sou

Mais uma dose, por favor
Morfina pra mente
É pra esquecer o que sente
Como? Não lembro.

Hudson Vicente.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Me viro


menino
virei adulto
calado, falante
virei meu pai
virei minha mãe
um pouco de tudo
a falta de todos
me virei
como pude nesse jogo
nunca virei a casaca
pra jogar em outro time
sempre perdi, nunca ganhei
o jogo não, o campeonato
me virei sozinho
artista, cresci
poeta, criei
moleque, sorri
quando dei por mim, chorei
passarinho, voei
beija-flor, beijei
cheirei o vento
soprou pra longe
nunca me achei
queimei o livro
arranquei páginas
fui lá fora, respirei
senti saudade, voltei
pedi carinho, não achei
gritei socorro, me deprimi
nem Capitu, nem Bentinho
nem Manoel ou Machado
recolho minhas asas
sou passarinho
do avesso
sou metade homem
metade menino
por inteiro sou fogo
que só o mar acalma
na mata eu canto
meu pranto hoje sopra
espalho e voo
tenho quedas livres
sonhos absurdos
no fundo
não há fundo
não me faço de doido
minha loucura é clinicamente sanada
desabo
e não toco violão
infinitos sorrisos
me solto
aprendi a ser inteiro
e só
nada mais
brilho e apago
na mesma frequência
exausto.

Hudson Vicente.