terça-feira, 31 de março de 2020

Anti-herói



amador na vida
procura arte
em amores
que são de marte

tem gosto de solidão
dor em liberdade
grito minha alma
quem possa ouvi-la

cintilante aqui
miúda
maior que a onda
que foge da areia

com medo
do próprio mar
canta o vento
sopra arrepio

pareço só
me escondo das nuvens
não irradia
meu grito não ouço 

acabo sozinho
aplaudo meu fim
diante do (m)ar
sou multidão em outros

faço arte
com pena da morte
escolhida com sorte
vai me guiar

não me restou
nada além de um sol
eloquente na cabeça
aprendi a deixar saudade

olhei o infinito
escolhi o tempo
danado
passou

tinha outros caminhos
quando abri os olhos
a flor despedaçada
em cima da mesa

levou pra longe
meu amor
um quadro torto na parede
e errei os passos da dança

ninguém mais ouvia
quando todo mundo falava
queria desbravar o mundo
mas mal saía de casa

absurdo
sentir saudade
quando não sentia
o coração.

Hudson Vicente.

quinta-feira, 26 de março de 2020

A paisagem é só o céu



nesse isolamento social
tenho feito poesia
das velhas lembranças 
que guardo na gaveta do coração

desenterrei esses dias uma carta escrita debaixo do meu colchão

minha janela é o céu 
luz apaga
luz acende
dia vira noite
madrugada vem insônia

leitura, reza, comprimidos
para a crise sanar
bebo saudade
engulo memórias

retalhos de esperança 
isolado em quarentena
pouco vejo a hora passar
os dias são os mesmos

a programação na TV é só tragédia
o colorido virou cinza
meus livros cheiram naftalina
poeira do tempo deixa a barba crescer

cabelo sem corte
estamos sem norte
parece que está todo mundo programado a morrer
se por sorte que Deus nos salve da morte

ainda ontem achei purpurina e fantasias do carnaval no fundo do guarda roupa
estou uma bagunça
meu quarto parece mais arrumado

nos deram mais quinze dias
e se o dinheiro acabar?
e se a fonte secar?
a poesia vai calar?

inesgotável...

não quero mais reviver passado nessas memórias
preciso do agora

nesse instante quero voar
mas não posso
estou preso dentro do meu l(u)ar

a paisagem é só o céu.


Hudson Vicente.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Não me perguntem como tenho passado



Vejo como tenho passado o tempo, me sinto um velho só. Embora seja novo demais para me sentir velho. E só. Eu penso demais o tempo todo. Velho passado e só. O tempo não bate na porta, não acompanho o tic tac do relógio, será que eu me sinto bem?

Alguém pergunta se está tudo bem. Nem dá tempo de responder. Tenho um passado que bate na minha porta, não consigo esquecer. Será que quero? Não consigo responder. Sei lá se me sinto bem. O tempo passa lento e só. O que eu tenho passado nesse tempo só?

Acordei e dei por mim, fotografias espalhadas pelos cantos da casa. Deve ser a poeira do tempo que eu não limpei. Me perguntam se estou bem, não sei responder. Me sinto velho e só. Jovem demais pra reclamar do tempo. Do passado que deixei de lado. Queria me buscar, me acariciar e dizer que vai ficar tudo bem.

Todo mundo tem dias ruins e dias ruins parece não ter fim. Já escrevi pra me salvar de mim. Queria uma dose do tempo do meu passado. Já quis me internar. Ninguém vai cuidar, me acalentar, meu óasis no fim. Um jovem velho com cicatrizes do tempo, neurótico e só. Eu sei que eu erro tanto quanto respiro, às vezes é difícil me suportar assim.

Meu inferno astral é tentar me consertar em segredo. Falho. Um fardo tão pesado, que afundo no meio do mar e não há pássaros para me resgatar. Afundo como Titanic sem medo. Medo, eu só tenho de mim. Não me sinto bem. Mas digo que estou. Velho e só. Ninguém me enxerga, até eu fecharia os olhos pra esse tempo de horror. Não me perguntem do meu passado. Eu nem sei quem eu sou. Jovem e só.

Hudson Vicente.