sábado, 20 de abril de 2019

Poeta poeira

sonho de poeira é voar
poeira no céu é poeira estelar
sonhar de olhos abertos
tirar os pés do chão
fazer da cabeça um balão
me solta, te solto, me perco
te cubro em volta, desejo
abraço, amasso, devolvo
fumaça solta contagia o céu
alegria, respira, olha a vida passar
doce sem mel
jurei escrever todos os dias, me traí
perdi a vontade de encontrar
de novo caí no conto, parecia um vigário
passarinho preso no fundo do rio
pergunto de novo: quem vai me salvar?
minha vida é escrever poesia
flutua no peito do poeta
oxigênio
um dia viro poeira
bagunça estelar.

Hudson Vicente.

Estarei aqui

Dizem que quando se abraça, o coração é a primeira parte tocada. Se já não disseram, eu acabei de inventar. Quando os olhos compreendem o motivo do sorriso, é lindo. Até a gargalhada é alta. Se faz presente. Tão gostosa de se ouvir, que é como uma canção. Deveria tocar na rádio durante meses. Quando a saudade bater, a gente repete de novo, feito 'tbt', para 'alimentar' nostalgia.
Outono ainda parece verão quando gostamos tanto de alguém. Mais do que isso, a gente se sente acolhido em qualquer canto. E eu, sempre tão contido, não me contive, me espetei em você pra fazer morada. Poderia passar muitas outras estações ali em qualquer abraço. Mas ficar por perto de quem faz bem pra gente de verdade, é insubstituível.
Mesmo na chuva, que a gente possa caminhar junto e tempestade nenhuma esfriar nossos corações, quando o mesmo já não quiser sorrir para a vida. Que possamos ficar para assistir sessenta pores do sol, e a rotina nos enlaçar e impedir de achar graça em tudo que há em volta. Que possamos foliar nossos carnavais, até mesmo nas quartas-feiras de cinzas, sem medo da ressaca. Que a gente dê sempre a mão e caminhe nem que seja no escuro, um do lado do outro. Que eu seja seu ouvido e você minha voz. Que você seja risada e eu sorriso. Que você seja abraço e eu conforto. Que nós sejamos nós por tanto tempo que até a eternidade duvide da demora dos nossos laços. E lembrar que é só sorrir, que logo o amor florirá (adoramos neologismos).

Hudson Vicente.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Grito

Carta:
Com licença, te escrevi uma carta:
Se você vier depressa e me impedir de pensar, de me fazer voltar, talvez algo possamos mudar.
Se você voltar e me impedir de dizer que eu vou me matar, talvez algo possamos mudar.
Se você sentar do meu lado, e um silêncio corrosivo entre nós se manifestar, e você disposto a quebrar o gelo, me abraçar, talvez algo possamos mudar.
Se você falar pra eu perder meu medo e me der a sua mão, talvez algo possamos mudar. A gente pode até dançar.
Se você falar pra eu levantar, e caso eu não consiga, você me ajudar, talvez algo possamos mudar. Eu vou te acompanhar.
Se você falar pra eu esquecer meu passado e viver contigo o agora, talvez eu esqueça o mundo e fique para sempre, seja lá o que isso significa, com você no presente.
Mas eu não estou te cobrando nada. Eu só não estou bem. Talvez daqui algumas horas passe. Ou eu piore. Ou eu realmente morra. Ou você desista de mim. E a gente se perca de vez como um rádio velho em alguma estação.
Se ainda eu estiver por aqui e perdido, e você não tenha feito nada, eu só te peço: não chega mais perto. Me assiste de longe, indo embora da sua vida. Pois continuarei a caminhar, até eu me encontrar.
Quem vai me salvar?

Resposta:
Não me cabe agora escrever sobre o amor. Não me cabe agora falar em solidão. O que ele precisa mesmo é gritar. Alto. Bem alto. Mais alto. Explodir. Só me cabe agora te ouvir. Bem atento as suas respirações. Concentrado em suas falas. Não perder um gesto. Entender o motivo de suas lágrimas. Acolher seu abraço, te deixar no meu colo enquanto o soluço ainda se faz presente. Tentar, mesmo que inutilmente, que suas tristezas sarem. Sei que você espera muito do mundo e quero que não se sinta só. Sou teu porto, teu cais em meio ao caos. Queria que hoje o mundo não fosse cinza, que não estivéssemos numa quarta-feira. Talvez sexta fosse propício, assim você sentiria vontade de sorrir.
Embora o relógio demore a completar seu percurso e cada segundo pareça uma eternidade, gostaria que tudo isso que você está sentindo agora, abandonasse seu corpo. Gostaria de verdade que algo de muito grande, partisse. E não fosse você.
Calma, respira suavemente. Se doer, pode apertar minha mão. Deixa eu virar seu lar. Abre os olhos e me encara, só não se entrega, por favor. Grita. Eu vou te ouvir. Não vou te deixar partir.

Hudson Vicente.

terça-feira, 2 de abril de 2019

Tempo difícil: falta coragem

sei que é um tempo difícil.
o sol quase não sai.
o céu não abre.
o mar está sempre em fúria.
quase ninguém se arrisca.

são flores mortas.
jardins abandonados.
paisagem meio assustadora.
horizonte deserto.
embora ainda haja beleza nisso tudo.

está difícil.
poemas não falam só de amor.
quase não vemos mais compaixão nos olhos dos outros.
amor em vez de dar, exigem.
e magoam-se e vitimizam-se através dele.

está faltando amar mais.
chegar mais perto, abraçar, afagar.
está faltando ter coragem.
perder o medo.

o acaso mais parece destino quando tudo dá errado.
e a vida cobra mais do que se pode pagar.
vai viver quem tem coragem.
e se esconder quem tiver medo.

Hudson Vicente.